Páginas

Que tal história?

Que tal história?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

METAMORFOSES

NAS MARGENS:
TRÊS MULHERES DO SÉCULO XVII


O livro "Nas Margens" de Natalie Davis traz a história de três mulheres do século XVII: Glikl bas Judah Leib, uma judia de Hamburgo; Marie de l'Incarnation, mística que se torna ursulina em Tours, mas troca a segurança da Europa pelos desafios de fundar um convento no Canadá; e Maria Sibylla Merian, pintora e entomologista protestante de Frankfurt, que viaja aos 52 anos, acompanhada unicamente por sua filha mais nova, ao Suriname.
Qual seria o denominador comum entre essas três mulheres, portadoras de experiências tão diversas e que, além disso, nunca se encontraram?
O texto que apresento aqui é uma resumo do terceiro capítulo e da conclusão do livro, que elaborei para a disciplina História Moderna I, no segundo semestre de 2010.





CAPÍTULO 3
MARIA SIBYLLA MERIAN
METAMORFOSES


Maria Sibylla Merian nasceu em 1647, na cidade de Frankfurt am Main. Filha do artista e editor Mathias Merian e Johanna Sibylla Heim. Seu pai morreu quando ela contava apenas três anos e Johanna se casou novamente como viúvo Jacob Marrel,
pintor especializado em natureza morta, gravador e marchand. Embora não fossem membros da elite dominante ambos possuíam riqueza e prestigio, e como artistas se situavam bem acima dos artesãos na hierarquia social de Frankfurt.
Praticamente todas as mulheres que se dedicaram à arte no inicio da era moderna pertenciam a uma família de artistas, embora existissem diferenças entre mulheres artistas e seus irmãos.
Ao mesmo tempo em que aprendia bordado Maria Sibylla assistia aulas que o padrasto ministrava a alunos varões, iniciando-se assim, nas artes do desenho, da aquarela, da pintura de natureza-morta e na gravura em cobre.
Outra diferença era que artistas homens se aperfeiçoavam viajando e freqüentando ateliês.
Maria Sibylla permaneceu sob a tutela da família, mas Frankfurt lhe proporcionava uma material visual bastante rico, além de algo mais modesto: lagartas. Maria Sibylla diria mais tarde que iniciara suas observações aos treze anos. Parece que ninguém se opôs a tal paixão, embora sua família a considerasse estranha.
O homem que esposaria Maria Sibylla em 1665, Johann Andreas Graff era um dos alunos favoritos de Jacob Marrel.
O casal morou em Frankfurt durante cinco anos, tempo em que nasceu sua filha Johanna Helena. Depois se mudaram para Nuremberg. Ali Maria Sibylla se dedicou à pintura em pergaminho e linho, ao bordado e a gravura, além de lecionar para um grupo de moças.
O casal levava uma vida aparentemente perfeita para uma família de artistas em sua época.
Seu primeiro livro nada tina de espantoso, mas em 1679 era publicado seu Raupen ou A maravilhosa metamorfose das lagartas e sua singular alimentação à base de flores [...] pintadas ao natural e gravadas em cobre, ao qual se seguiu um segundo volume em 1683.
Seu interesse pela beleza relacionava-se com a tradição da natureza-morta em que se formara. Quando realizou seus estudos com insetos vivos, as mariposas e lagartas de seu Raupen não estavam ali só para reforçar o que existia de vivo nas imagens florais, estavam ali por sua própria importância. Seus insetos e plantas contavam uma história de vida, o tempo transcorria em suas imagens para evocar um processo de mudança especifico e interligado. Sua obra estava imbuída de espírito religioso.
Seus foco de interesse estava nas características exteriores dos insetos ao longo do processo de metamorfose e nas plantas que serviam de alimentos às larvas nas diversas épocas do ano. Sua visão era, de certa forma, ecológica. Merian concentrou-se nas interações processadas na natureza e nos processos orgânicos transformativos. Os livros conduziam o leitor através de um caminho visualmente surpreendente e agradável.
A publicação do Raupen constituiu um feito "notável" para uma mulher. Maria Sibylla constitui um exemplo único do século XVII. Outras contemporâneas que se dedicaram à pintura de naturezas-mortas incluíram insetos em seus quadros, porém não chegaram ao ponto de cria-los e estuda-los, outras colecionavam borboletas, mariposas e lagartas, porém nãoescreveram sobre elas, nem as representaram.
Merian foi uma pioneira: atravessou as fronteiras da instrução e do sexo para adquirir conhecimentos sobre insetos e criou as filhas ao mesmo tempo que observava, pintava e escrevia. Temos aqui não uma cabeça feminina às voltas com a análise ou eternamente presa ao orgânico e sim uma mulher que se dedicou à atividade científica numa margem criativa situada entre o laboratório doméstico e a douta academia.
Mais explicitamente importante que seu sexo era a legitimação, ou melhor, a santificação de seu trabalho de entomologia por meio da religião.
Maria Sibylla ainda não passara pela experiência da conversão quando começou a publicar o Raupen, porém a ênfase que deu à criatividade divina e o "entusiasmo" com que falou dos insetos e de sua beleza certamente lhe prepararam os ouvidos para as cadências proféticas e líricas que logo lhe encheriam o mundo.
Em 1683 os Graff retornaram à Frankfurt a fim de resolver questões de família e propriedade. No verão de 1685 o processo terminou, e Graff, que passara algumas temporadas em Nuremberg desenhando cenas urbanas, voltou definitivamente para casa. Em vez de acompanha-lo Maria Sibylla seguiu com a mãe e as duas filhas para Wieuwerd, na Frísia, onde pretendia ingressar na comunidade labadista. A conversão ocorreu em Frankfurt durante a querela familiar.
O que se seguiu foi uma enorme transformação. Embora não fosse obrigada a separar-se das filhas, Maria Sibylla passou por mudanças cruciais. Tratava-se de abandonar imediatamente a violência, o orgulho e a concupiscência do mundo e viver a vida dos regenerados, com absoluto arrependimento.
A comunidade deveria crescer e transformar-se em uma Nova Jerusalém. Todas as línguas e todas a posições sociais eram bem acolhidas.
Em Waltha a única hierarquia importante era a espiritual, com a “primeira classe” dos eleitos, todos Irmãos e Irmãs, acima de “segunda classe” de aspirantes, ainda presos ao egoísmo.
Os pertences dos aspirantes eram doados imediatamente à comunidade, para uso de todos; e a admissão na “primeira classe” implicava a renúncia a qualquer propriedade deixada no mundo pecaminoso.
Em 1690 escreveu às autoridades de Frankfurt declarando que não possuía bens nessa cidade e que tudo o que lhe atribuíam pertencia a Johann Andreas Graff. O casamento chegara ao fim. Está claro que Johann Andreas não partilhava seu entusiasmo religioso e fracassou ao tentar tira-la de Wieuwerd.
Embora as filhas conservassem o sobrenome Graff, Maria Sibylla retomou o nome Merian e a partir dos 39 anos viveu sem marido.
Dentro da economia espiritual dos labadistas de amor e castigo alguns se sentiam renovados e contentes, enquanto outros começavam a ressentir-se da mortificação.
Quaisquer que sejam as consequências do desenvolvimento espiritual de Merian, o campo do trabalho é o que pode ser melhor rastreado durante seu estágio entre os labadistas. No caso dos estudos da natureza Maria Sibylla podia facilmente defender-lhes a importância religiosa. As plantas e os insetos eram não só criaturas de Deus, mas também exemplos do “eu inocente”. Além de realizar todas as tarefas que a comunidade lhe atribuía, Maria Sibylla procurava lagartas e mariposas nos brejos e charnecas da Frísia e estendia seu interesse a sapos. Tinha um livro de bom papel branco e usando molduras de papel azul-cinzento, colocou ali sua coleção de pequenas aquarelas. Parece que esse livro constituiu não só um estudo da natureza como um exercício espiritual. É um história de vida, um Lebenslauf do tipo que um convertido devia apresentar a uma seita para justificar sua admissão.
Cinco ou seis anos depois ela mudou de opinião a respeito dos labadistas e partiu para o mundo perverso de Amsterdam.
Para uma artista-naturalista que resistira a todos os sistemas classificatórios a nítida fronteira estabelecida entre eleitos e o mundo talvez tivesse começado a perder o encanto. A parte sua importância simbólica ou afetiva, tal fronteira teve consequências de ordem prática na vida de Merian.
Em algum momento de verão de 1691 Maria Sibylla decidiu deixar a Nova Jerusalém com as duas filhas e suas pinturas, gravuras e espécimes. Depois disso Merian não fez nenhuma declaração sobre os labadistas.
Maria Sibylla retomou as aulas de pinturas que a sustentaram em Nuremberg e Frankfurt; suas aquarelas com flores insetos e aves encontraram compradores importantes.
Parece que sua única dificuldade consistiu em expor ao mundo decaído sua condição de mulher divorciada em circunstâncias incomuns.
Paralelamente os volumes do Raupen ganhavam as bibliotecas científicas da Inglaterra e sua obra entomológica progredia, sendo bem recebida pelos naturalistas e colecionadores de Amsterdam. No entanto faltava a essas coleções algo muito importante: as origens e subseqüentes transformações dos insetos. Sua coleção de “plantas e insetos das Índias Orientais e Ocidentais” aparentemente também deixava muito a desejar. Ademais essas coleções pouca influência tinham sobre os livros de entomologia contemporâneos. Assim ela decidiu fazer uma longa e dispendiosa viagem ao Suriname.
Foi uma viagem extraordinária para os padrões da época. Embora estivessem sob a proteção do capitão Maria Sibylla Merian, de 52 anos, e sua filhas Dorothea, de 21, constituíam uma anomalia, viajando à conta de negócios estranhos e sem companhia masculina. Como viajem de uma artista-cientistas a viagem também era incomum.
Maria Sibylla Merian não contava com nenhuma regalia. Certamente a existência de uma colônia holandesa no Suriname constituía um requisito básico para sua pesquisa, todavia Merian não tinha ligação formal com membros do governo nem de instituições religiosas que lhe abrissem caminho.
Ao menos estava livre para tomar as próprias decisões. Em fevereiro de 1699 pediu a um agente que vendesse uma grande quantidade de suas pinturas de frutas, plantas e insetos, bem como numerosos exemplares adquiridos na Alemanha, na Frísia e na Holanda e enviados das Índias.
As mudanças ocorridas na vida dela a haviam preparado para essa aventura. Entre labadistas, ouvira falar muito do Suriname. Nos anos que antecederam sua chegada Wieuwerd os Irmãos e Irmãs enviaram dois grupos de devotos para a América. Um grupo adquiriu terras em Maryland e outro refugio surgiu em 1683. Nos dois anos seguintes mais de quarenta labadistas chegaram à colônia.
Em fins de 1686 os colonos começaram a voltar para Wieuwerd, poucos anos depois não havia mais dúvidas de que o empreendimento falhara. Poucos Irmãos e Irmãs permaneceram no Suriname até a década de 1690.
O resíduo dessa experiência deve ter sido complexo para Maria Sibylla. Por um lado, um sonho de provação heróica num clima perigoso e o atrativos de um mundo de insetos desconhecido e exótico, por outro lado uma consciência de que a aventura religiosa na selva fracassara. Merian partiu para o novo mundo levada não tanto pelo fervor religioso quanto a necessidade de redefinir mais concretamente suasaspirações.
Merian nunca produziria a Metamorphosis se permanecesse entre os eleitos, mas também nunca iria ao Suriname se não tivesse um dia ousado ser labadista.
No final do verão de 1699 Maria Sibylla e Dorothea desembarcaram. A proprietária e administradora era a Sociedade do Suriname.
O açúcar era então o único produto de exportação da colônia e a sua obsessão, o trabalho pesado ficava por conta dos escravos e também um pequeno número de ameríndios.
Maria Sibylla instalou-se com Dorothea numa casa de Paramarimbo, onde, em Outubro de 1699, no auge da estação seca, pintou e registrou suas primeiras metamorfoses. Tinha algumas relações que poderiam ajuda-la, incluindo algumas famílias da elite.
Maria Sibylla comprou ou ganhou alguns escravos, entre os quais um índio e uma índia.
Merian mergulhou na tarefa de descobrir, criar e registrar, vendo mais utilidade nos africanos e ameríndios do que nos agricultores europeus. Seu trabalho de observação tinha lugar em seu próprio jardim e também a floresta repleta de pássaros.
Com Dorothea e seus africanos e ameríndios visitou propriedades ao longo do Suriname em busca de novas lagartas, começando na estação chuvosa de abril de 1700, quando viajou 60km rio acima até a colônia providência.
Em junho de 1700, ela estudou especialmente as lagartas alimentando-se com flores de mandioca. Viajando ou em Paramarimbo, conversava como insetos e uso das plantas com seus trabalhadores e outros ameríndios e africanos.
Além da infindável curiosidade havia a tarefa da representação. Primeiramente esboçava as figuras ao vivo e depois, pintava sobre pergaminho as lagartas e crisálidas com os respectivos alimentos e ao mesmo tempo rotulava borboletas, mariposas, besouros e tudo o que mais que pudesse conservar em conhaque ou prensar.
Ao cabo de quase dois anos não conseguiu mais suportar o calor, e encerrou sua estadia no Suriname. Em 18 de junho de 1701 partiu com Dorothea para a Europa. Antes de embarcar combinou com um habitante local o envio futuro de exemplares para comerciar.
Quatro anos depois a Metamorphosis insectorum surinamensium veio a luz em Amsterdam.
O dinheiro ainda não era suficiente para cobrir os gastos e pagar os empréstimos feitos para a viagem. O livro foi publicado em holandês e latim, e era ao mesmo tempo editora e autora.
Aqui seu modo característico de mostrar os processos e as relações da natureza, aplicou-se a criaturas e plantas que os europeus desconheciam ou achavam bizarras. Os insetos do Novo Mundo foram para o centro do palco, observados por um olhar arguto e descritos por quem mantinha estreito contato com as comunidades científicas da Europa.
A estratégica narrativa global era de natureza estática, como no Raupen, e habilmente conduzia o leitor europeu de um lado a outro, do familiar ao estranho. A estratégia de Merian teve seus críticos.
Entre a Metamorphosis e o Raupen há, porém, importantes diferenças. Merian realizou um esforça explicito de relacionar suas descobertas com as de outros naturalistas. Denominou cada planta segundo os vocabulários ameríndio e/ou holandês do Suriname. E indicou se a espécie se encontrava no Jardim Botânico de Amsterdam e se fora incluída em obras anteriores sobre plantas não européias.
Desde a primeira edição do Raupen a presença divina se tornará muito menos evidente no seu trabalho, Maria Sibylla Merian fora além da simples frieza em relação ao separatismo labadista e chegara a uma visão desapaixonada da presença e do poder de Deus no mundo.
Ao afastar Deus da natureza Maria Sibylla criou um vazio emocional e intelectual que tratou de preencher de dois modos. Primeiro, com seus projetos sobre a utilidade de plantas e insetos; segundo, com as suas observações sobre os ameríndios e africanos no Suriname.
Merian reconheceu que africanos e ameríndios a ajudaram a encontrar e manusear insetos. Até deram testemunho sobre eles. Contudo, a própria Maria Sibylla despertou o leitor para as condições da escravidão em seu texto sobre a Flos pavonis.
O que distingue o relato de Merian é seu tom de conversação com as mulheres que falavam em abortar os filhos para não os dar a luz como escravos.
Na Metamorphosis as próprias ameríndias identificam o abortivo para Maria Sibylla. Há aqui um compartilhamento público dos “segredos femininos”, expostos com certa simpatia por uma européia em cujo mundo o aborto era ilegal e pecaminoso.
Se esse foi o único trecho Metamorphosis em que Maria Sibylla expressou algum sentimento pelos escravos ou se referiu a suas agruras, essa não foi absolutamente a única “instrução” que recebeu de africanos e ameríndios. Seus textos são repletos de preciosas informações etnográficas, muitas das quais fornecidas por mulheres.
Merian eventualmente entrava no mundo dos africanos e ameríndios, expondo sua opinião de européia sobre o gosto d determinadas plantas e frutas, nunca de insetos, sapos ou ovos de cobra.
O que distingue o trabalho de Merian é o tom etnográfico. Assim como ela não classificou as espécies de flora e fauna, também não se preocupou em classificar os costumes de ameríndios e africanos. Suas observações eram específicas, referiam-se a plantas e insetos individuais, e constituíam uma extensão de seu modo de ver as relações existentes na natureza.
Em geral criticou com firmeza os europeus obcecados pelo açúcar. Não se preocupou em descobrir se o cristianismo melhoraria os ameríndios e africanos.
O estilo científico e o intercâmbio coloquial de Merian fomentaram um literatura etnográfica indiferente a fronteira entre civilizado e selvagem. Maria Sibylla não dos deixou nenhum retrato de pessoas, européias ou não.
Merian incluiu os nomes de naturalistas e de dois fazendeiros em cujas observou determinados insetos; quanto as suas ajudantes não européias, designou-as simplesmente como “escravas negras”.
No sentido mais amplo, a ameríndia talvez achasse estranho alguém transmitir conhecimentos sobre plantas e insetos sem acrescentar o que os europeus chamavam de usos mágicos e rituais.
Maria Sibylla, tão interessada em comparações cultuais, observaria que o uso mágico das plantas por parte do ameríndios e africanos assemelhava-se ao uso das ervas na medicina rural da Alemanha. Não sabemos até que ponto chegaram de fato as informações de Maria Sibylla sobre as práticas rituais dos Caraíbas e africanos.
Em 1711 ela era uma das figuras internacionais de Amsterdam, uma pessoa que todos deveriam conhecer. Agora Maria Sibylla era Juffrouw (senhorinha) Merian, um título informal que regularizava sua condição anômala. As relações de Maria Sibylla com Dorothea Maria e Johanna Helena tem seus mistérios.
Se agradeceu as seus informantes africanos e ameríndios, bem como a seus auxiliares escravos, na Metamorphosis Merian não disse uma só palavra sobre as filhas.
De qualquer forma suas filhas ficaram inteiramente a vontade no terceiro volume Rupsen, composto de observações inéditas de Maria Sibylla, mas publicado após a sua morte, em 1717.
As filhas herdaram seu espírito de aventura. Johanna Helena partiu para o Suriname em 1711. No outono de 1717 Dorothea Maria partiu para São Petersburgo, tornando-se a segunda esposa do pintor suíço Georg Gsell.



CONCLUSÃO


Vidas distintas, mas que transcorreram num campo comum. Os azares da peste, os sofrimento da enfermidade e a morte prematura de parentes.
A semelhança mais importante esta em seu método de trabalho, uma versão feminina de um estilo artesanal-comercial. As três possuíam indubitável perícia, eram competentes contadoras, capazes de registrar empréstimos e dotes de filhos. Estavam sempre prontas para entrar rapidamente em ação, para utilizar suas habilidades a fim de suprir as necessidades do momento.
Para os citadinos a flexibilidade profissional geralmente estava associada a pobreza. Para as citadinas, ricas ou indigentes, a flexibilidade era essencial e estimulada por sua criação, as meninas recebiam informações genéricas sobre uma ou mais atividades e eram treinadas para cuidar do lar.
Glikl bas Judah Leib e Marie Guyart certamente viveram desse maneira, a religião contribuiu para incentivar sua flexibilidade. Maria Sibylla era uma pouco diferente, embora aprendesse sozinha a criar e observar insetos, durante anos e anos recebeu formação artística da família. Ela conviveu principalmente com técnicas que pertenciam ao ateliê do artista versátil do século XVII. Glikl, Marie e Maria Sibylla adquiriram sua perícia na juventude, praticando num ambiente em que eram também administradoras do lar. A confirmação ocorreu mais tarde.
Essa consciência artesanal talvez estivesse presente na atenção que as três mulheres dedicaram ao ato de escrever e descrever. Tinam seus modelos, mas a composição de seus manuscritos exigiu critérios de narrativa e diálogo. A religião teve enorme influência sobre essas três mulheres. A auto-imagem de Glikl bas Judah Leib, como filha de Israel, deu-lhe uma identidade profunda, mediante a qual se infiltraram outras identidades. Marie Guyart de L'incarnation aproveitou-se de dois dos caminhos que a Igreja hierárquica da contra reforma deixava aberto para as mulheres: a conquista da santidade e o desenvolvimento de uma vocação magisterial. Desde o início tais práticas se refletiram sobre sua eloqüência e sua percepção de si mesma.
Formas de uma espiritualidade protestante radical irromperam na via de Maria Sibylla Merian como força especial quando ela estava na casa dos trinta e dos quarenta. Primeiro foi sua extasiada consciência da presença divina na natureza. Depois foi a conversão a seita labadista e o rompimento com o marido, propriedade familiar e orgulho mundano. Anos após deixar a comunidade, uma energia e uma convicção semelhantes às dos labadistas animaram sua bizarro projeto de viajar para as selvas do Suriname a fim de desenvolver suas pesquisas. Com certeza esses movimento religiosos conduziram Maria Sibylla a auto-reflexão e ao diálogo interior.
Nos casos de Glikl bas Judah Leib e Marie de L'incarnation a elaboração de uma auto-biografia não ameaçava uma empresa comercial ou um vocação magisterial. No caso de Maria Sibylla Merian os “escândalos” que marcaram a vida não eram secundários. Expô-los poderia constituir uma ameaça para sua identidade de naturalista, pintora e mulher.
As relações e as experiências familiares determinaram a forma básica dessas vidas no século XVII, porem na prática revelavam grandes variações. Nos três casamentos as prescrições hierárquicas de obediência por parte da mulher se desgastaram com a experiência da empresa comum. Entretanto tais arranjos não resultaram necessariamente num matrimônio feliz.
O pais insensível e distante que freqüentava as histórias da família nos primórdios da era moderna figuram nessas casas. Já a voz materna varia em tom e intensidade.
Apesar de sua dedicação à amigas e parentas, Glikl, Marie e Maria Sibylla não fizeram da promoção feminina seus principal objetivo. Contudo, suas histórias revelam outras possibilidades de vida no século XVI, já que elas batalharam por nova maneira de viver nas margens.
“Margens” no sentido de que essas mulheres estavam longe dos centros de poder político real, cívico e senatorial.
As mulheres também estavam consideravelmente longe dos centros formais de aprendizagem e de instituições voltadas para a definição cultural. Nos três casos, visões e artefatos culturais, foram criados a partir de uma posição marginal. Contudo, essa posição não tinha a esterilidade ou o baixo nível de qualidade atribuídos a palavra margem na acepção da economia moderna que pensa em termos de lucros. Ao contrário, era uma região limítrofe entre depósitos culturais que permitiam novos cultivos e híbridos surpreendentes. Cada qual a sua maneira, essas mulheres apreciaram ou adotaram uma posição marginal. Em cada um dos casos a pessoa se libertou um pouco das restrições das hierarquias européias, deixando-as de lado.
Padrões variantes nos alertavam para mobilidade, mistura e controvérsia em cultura européias. Também deixam espaço para inserção de olhos não europeus que desenvolveram o olhar do europeus.
A narrativa desse livro segue uma ordem diferente da cronologia histórica. Cada uma dessas mulheres constitui um exemplo, com as próprias virtudes, iniciativas e falhas, e os motivos europeus do século XVII perpassam suas vidas.

Nenhum comentário: